Apelação de sentença que julga improcedentes embargos à execução
Possibilidade de atribuição de efeito suspensivo pelo próprio Juiz prolator
A jurisprudência tergiversava sobre a definitividade (ou não) de execução por título extrajudicial quando pendente apelação contra sentença que julga improcedentes os embargos. A questão era saber se, nessa situação, a execução adquiria o caráter de provisória ou definitiva. A discussão tinha relevância porque se entendida como definitiva, poderiam ser praticados todos os atos para a satisfação desde logo do direito credor, incluindo a alienação de bens penhorados e o levantamento de quantias, sem necessidade de caução, exigência própria da execução provisória. Segundo Cândido Rangel Dinamarco, que defendia ser definitiva a execução nessa situação, o propósito do legislador ao atribuir somente efeito devolutivo ao recurso da sentença que rejeita os embargos, teria sido o de tornar a prestação jurisdicional mais célere. Para o emérito processualista, não havia sentido em postergar a satisfação do direito do credor diante da certeza proporcionada pelo título e pela (primeira) decisão judicial, daí que a execução, depois da sentença denegatória dos embargos, adquiria caráter de completude, autorizando-se plenamente a alienação de bens e levantamento de quantias. Dizia ele:
“O visível intuito do legislador é a aceleração da tutela jurisdicional, apoiado no fato de ser extremamente provável a existência do crédito exeqüendo, quando nesse sentido convergem a própria existência de um titulo dotado de eficácia abstrata e ainda um ato judicial que reafirma essa eficácia”.[1]
No mesmo sentido – pelo destravamento completo do processo executivo, com todos atos necessários à satisfação do crédito, inclusive levantamento de depósitos, independentemente de caução, no caso de sentença que rejeita embargos à execução e apelação recebida apenas com efeito devolutivo – pronunciava-se Araken de Assis, o qual argumentava que a possibilidade de reversão da decisão não é fundamento suficiente ao impedimento de atos de alienação e levantamento de depósitos, pois resta sempre o caminho de eventual ressarcimento do executado. Sustentava ele que a certeza do título soma-se à credibilidade da (primeira) decisão judicial e, ainda que provisória, não haveria razão para travar a execução até o julgamento do recurso:
“A posição contrária lobriga temor quanto à reversão da sentença e os conseqüentes danos provocados na esfera jurídica do executado. Essas considerações se mostram pouco razoáveis. Em primeiro lugar, o ressarcimento do devedor se encontra assegurado pelo art. 574; ademais, o regime do art. 520, V, deriva de um sábio juízo de probabilidade: o credor já dispunha de título, beneficiado pela presunção de certeza, e, agora, a seu favor milita a sentença proferida nos embargos, é verdade que provisória, mas que só reforça a credibilidade de sua vantagem inicial. Entre travar por mais tempo a execução, na pendência do recurso, e, desde logo atuar os meios executórios, o legislador optou, com razão, pela primeira diretriz. Ela não é de assusta”[2].
Essa doutrina teve amparo na jurisprudência do STJ, que editou a Súmula n. 317, de seguinte teor:
“É definitiva a execução de título extrajudicial, ainda que pendente apelação contra sentença que julgue improcedentes os embargos”.
Não havia, portanto, qualquer dúvida quanto à definitividade da execução na pendência de apelação de sentença que rejeita os embargos à execução, abrangendo a realização de todos os atos executórios, inclusive a realização de praça[3] e a expedição da respectiva carta de arrematação[4].
Ocorre que sobreveio a Lei n. 11.382, de 6.12.06, que possibilitou a reforma do processo de execução fundada em título extrajudicial, atribuindo nova redação ao art. 587, que ficou com o seguinte texto:
“Art. 587. É definitiva a execução fundada em título extrajudicial; é provisória enquanto pendente apelação da sentença de improcedência dos embargos do executado, quando recebidos com efeito suspensivo (art. 739)”.
Essa nova redação atribuída ao art. 587 do CPC leva à superação da Súmula 317 do STJ, já que, se pendente apelação contra a sentença que rejeita dos embargos, a sua definitividade (ou provisoriedade) fica a depender do que houver decidido previamente o Juiz quanto aos efeitos da peça de defesa do executado. Antes, na inteligência da Súmula citada, a execução, nessa hipótese, era sempre definitiva, ficando autorizada a prática de todos atos executórios. Agora, a definitividade fica condicionada ao ato de recebimento dos embargos; depende de como o Juiz os recebeu, atribuindo-lhes ou não efeito suspensivo da execução, na forma do art. 739-A, § 1o.. Este último dispositivo permite ao Juiz atribuir efeito suspensivo aos embargos quando o prosseguimento da execução puder resultar em prejuízo de difícil ou incerta reparação ao executado[5]. Assim, acaso o Juiz tenha recebido os embargos com efeito suspensivo, e havendo apelação da sentença de improcedência, a execução prossegue, mas em caráter provisório, com os condicionamentos estabelecidos na Lei processual. Se, ao contrário, aos embargos não se atribui efeito suspensivo, deve ser dada continuidade à execução, como definitiva, propiciando-se o pagamento ao credor, através do levantamento do dinheiro depositado ou da entrega do produto dos bens alienados (arts. 708 e 709 do CPC).
Embora criticada por muitos, essa nova redação do art. 587 do CPC é perfeitamente compreensível, pois denota a preocupação do legislador em dotar o Juiz de instrumentos para evitar qualquer forma de prejuízo ao executado. A alteração legislativa não constituiu, como argumentam alguns[6], um retrocesso em relação à reforma do processo de execução[7]. O que ocorre é que a realização de atos executórios que importem liberação de depósitos ou alienação de bens traz sempre o potencial de irreversibilidade, em termos de prejuízo ao patrimônio do executado, tornando inútil o eventual êxito deste no julgamento final dos embargos. Assim, é preferível o caminho híbrido seguido pelo legislador reformista, não estabelecendo que a execução é sempre provisória ou sempre definitiva, na pendência dos embargos, mas que pode ser uma coisa ou outra, dependendo de, diante das circunstâncias do caso, entender de conferir ou não efeito suspensivo aos embargos. Trata-se de uma regra que flexibiliza a natureza da execução quando ainda pendente de recurso a sentença que julga (ainda que os rejeite) os embargos, o que dá mais garantias ao devedor de não sofrer prejuízos irreparáveis. Embora exista previsão (art. 574 do CPC) de que o credor deve ressarcir o devedor danos por este sofridos, quando a decisão final declara inexistente a obrigação que deu lugar à execução, sabe-se que, na prática, a reparação é sempre muito difícil. Daí ser preferível estabelecer mecanismos para que o Juiz, mesmo rejeitando os embargos, possa prosseguir com a execução de forma provisória, evitando a liberação antecipada de valores ou outra medida que cause prejuízos ao executado.
Um aspecto que merece análise mais profunda diz respeito à possibilidade (ou não) de o Juiz conferir efeito suspensivo aos embargos depois de já tê-los julgado, quando recebe a apelação da sentença de improcedência. A redação do § 1o. do art. 739-A do CPC, embora não o diga expressamente, deixa entrever que o momento em que o Juiz decide sobre a atribuição de efeito suspensivo coincide com o recebimento da peça dos embargos[8]. Em regra, é na oportunidade em que recebe os embargos que o Juiz decide sobre a suspensão ou prosseguimento da execução, até porque o pedido de atribuição de efeito suspensivo costuma ser formulado no próprio corpo da petição dos embargos. Isso não significa, no entanto, que não possa examinar essa questão em outra ocasião, pois tal possibilidade decorre da própria letra da Lei, quando confere ao Juiz a faculdade de modificar a decisão sobre os efeitos dos embargos, tal qual está previsto no parágrafo 2o. do artigo citado, verbis:
“A decisão relativa aos efeitos dos embargos poderá, a requerimento da parte, ser modificada ou revogada a qualquer tempo, em decisão fundamentada, cessando as circunstâncias que a motivaram”.
Pelos termos dessa norma, não somente o magistrado pode retirar efeito suspensivo aos embargos, se já o houver concedido, como pode atribuí-lo, no caso de o haver negado anteriormente. Tudo estará a depender da alteração das circunstâncias do caso específico, dependendo de o prosseguimento dos atos executórios causar ou não dano de difícil ou incerta reparação ao executado. Mesmo quando o Juiz se omite em decidir sobre atribuição de efeito suspensivo, por não ter o embargante requerido expressamente na peça de embargos ou por outro motivo qualquer, nada obsta que aprecie a questão posteriormente. A análise das circunstâncias que justificam a atribuição de efeito suspensivo aos embargos pode ser feita até mesmo depois de o Juiz já tê-los rejeitado.
Para alguns, essa posição encerra uma incongruência, pois se o magistrado não confere, num primeiro momento, o efeito suspensivo, com muito mais razão não pode conferi-lo depois de julgar improcedentes os embargos, já que a sentença reforça a credibilidade do direito do exequente. Se o Juiz não concede a suspensão inicialmente, é contraditório que o faça já depois de ter exercido um juízo de valor em favor da regularidade do crédito, argumenta-se. Porém, embora possa parecer contraditório, a concessão de efeito suspensivo mesmo depois da rejeição dos embargos, pode, em certos casos, emergir como medida processual adequada para evitar riscos de lesão de difícil reparação ao patrimônio do executado. Explico: quase sempre o Juiz evita paralisar a execução no seu nascedouro. Paralisá-la logo no início pode trazer prejuízos maiores de ordem inversa, uma vez que o credor fica sujeito a possível desfalque do patrimônio do devedor e à perda de eventual preferência pela primeira penhora, sem contar a demora em receber o que lhe é devido. Por outro lado, logo no começo o processo executivo não tem como causar dano de difícil ou incerta reparação ao executado. Os atos iniciais são apenas de reserva patrimonial (através da penhora e avaliação), insuscetíveis de causar prejuízos de difícil reparação. Tanto esses atos são incapazes de causar dano que o legislador estabeleceu que “a concessão do efeito suspensivo não impedirá a efetivação dos atos de penhora e avaliação de bens” (§ 6o. do art. 739-A, do CPC). O risco de irreversibilidade da lesão (ao patrimônio do devedor) só surge quando a execução caminha para outra fase, quando os bens já estão arrecadados e existem quantias depositadas para garantir o débito. Daí que, mesmo na eventualidade de rejeição dos embargos, o Juiz pode, nesse momento, atribuir-lhes efeito suspensivo, para evitar a alienação de bens e especialmente o levantamento de depósitos. Isso evita que, se a apelação dos embargos for provida, o devedor não tenha desfalque irreversível em seu patrimônio, considerando as naturais dificuldades de se recuperar em outro processo judicial o que o tribunal reconhecer como pagamento indevido.
A faculdade de o Juiz atribuir efeito suspensivo aos embargos na pendência de apelação também resulta de uma interpretação sistemática das normas do CPC. Com efeito, o Código contém norma que permite ao relator de recurso no tribunal suspender o cumprimento da decisão até o pronunciamento definitivo da turma ou câmara (art. 558). O parágrafo único desse artigo refere que a mesma medida pode ser aplicada às hipóteses previstas no art. 520 do mesmo Código, ou seja, abrange os casos de apelação recebida apenas no efeito devolutivo[9]. Assim, o cumprimento da sentença que rejeita liminarmente ou julga improcedentes os embargos à execução pode ser suspenso por ato do relator do recurso, desde que seja relevante o fundamento invocado e do prosseguimento da execução possa resultar lesão grave e de difícil reparação[10]. Ora, se o relator pode atribuir efeito suspensivo ao recurso, o que na prática implicar transformar a natureza da execução de definitiva para provisória, é razoável também se entender que o Juiz a quo possa tomar medida que traga o mesmo resultado. Essa regra (art. 558 do CPC) existe dentro do sistema de normas processuais para evitar prejuízos patrimoniais irreversíveis ao executado. A lógica dela é justamente essa: de impedir a consumação de atos que produzam resultados irreversíveis, em termos de prejuízo patrimonial (ao executado). Ora, se existe norma com esse objetivo, nada mais natural que se atribuir ao Juiz da primeira instância a faculdade de, divisando a possibilidade de o prosseguimento dos atos de execução produzir prejuízo incontornável, atribuir efeito suspensivo aos embargos (na forma da previsão do art. 739-A), mesmo depois de já tê-los julgado (com rejeição).
É claro que essa atribuição de efeito suspensivo aos embargos deve ser adotada em situações excepcionais, sobretudo quando existem quantias vultosas a serem levantadas. Na grande maioria dos casos, em que a execução envolve valores modestos ou a parte exequente apresenta solvabilidade, é preferível não retirar a agilidade da execução, satisfazendo-se desde logo o crédito.
[1] Em de Instituições de Direito Processual Civil, Vol. IV, São Paulo: Malheiros, 2004 pp. 765-766.
[2] Manual do Processo de Execução, 8a. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, pp. 1.293-1.294.
[3] STJ-4a. Turma, REsp 347.455, rel. Min. Sálvio de Figueiredo, j. 6.7.02, DJU 24.3.03.
[4] STJ-3a. Turma, REsp 144.127, rel. Min. Waldemar Zveiter, j. 15.10.98, DJU 23.5.94.
[5] E desde que a execução já esteja garantida por penhora, depósito ou caução suficientes (parte final do § 1o.).
[6] Theotônio Negrão argumenta que a modificação legislativa em questão configurou um retrocesso, na medida e que retira a força da execução na pendência de apelação voltada contra a rejeição dos embargos. Nota 4 ao art. 587. Código de Processo Civil e Legislação Processual em vigor. Editora Saraiva. 42a. edição, p. 752.
[7] Proporcionada pela Lei 11.382, de 6.12.06.
[8] O art. 791, I, do CPC, também prevê a suspensão da execução “no todo ou em parte, quando recebidos com efeito suspensivo os embargos à execução (art. 739-A)”.
[9] Nesse sentido: JTJ 204/184, RJ 276/95.
[10] O STJ admite o recebimento, em ambos os efeitos, da apelação contra sentença que julga improcedentes embargos do devedor: “Havendo risco de irreversibilidade da execução definitiva, tornando inútil o eventual êxito do executado no julgamento final dos embargos, poderá o embargante, desde que satisfeitos requisitos genéricos da antecipação de tutela (fumus boni juris e periculum in mora), socorrer-se de uma peculiar medida antecipatória, oferecida pelo art. 558 do CPC: a atribuição de efeito suspensivo ao recurso” (STJ-1a. T., REsp 450.259, rel. Min. Castro Meira, j. 21.10.04, DJU 16.11.04). No mesmo sentido: STJ-1ª. Turma, REsp 652346-RJ, rel. Min. Teori Albino Zavascki, ac. un., j. 21.10.04, DJ 16.11.04; STJ-2ª. Turma, REsp 608178-SC, rel. Min. Castro Meira, j. 03.06.04, DJ 16.08.04.