Lei nº 27/2021, de 17 de maio

Lei nº 27/2021, de 17 de maio, que aprovou a Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital

Lei n.º 27/2021 de 17 de maio

Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital

A Assembleia da República decreta, nos termos da alínea c) do artigo 161.º da Constituição, o seguinte:

Artigo 1.º Objeto

A presente lei aprova a Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital.

Artigo 2.º Direitos em ambiente digital

1 – A República Portuguesa participa no processo mundial de transformação da Internet num instrumento de conquista de liberdade, igualdade e justiça social e num espaço de promoção, proteção e livre exercício dos direitos humanos, com vista a uma inclusão social em ambiente digital.

2 – As normas que na ordem jurídica portuguesa consagram e tutelam direitos, liberdades e garantias são plenamente aplicáveis no ciberespaço.

Artigo 3.º Direito de acesso ao ambiente digital

1 – Todos, independentemente da ascendência, género, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual, têm o direito de livre acesso à Internet.

2 – Com vista a assegurar um ambiente digital que fomente e defenda os direitos humanos, compete ao Estado promover:

a) O uso autónomo e responsável da Internet e o livre acesso às tecnologias de informação e comunicação;

b) A definição e execução de programas de promoção da igualdade de género e das competências digitais nas diversas faixas etárias;

c) A eliminação de barreiras no acesso à Internet por pessoas portadoras de necessidades especiais a nível físico, sensorial ou cognitivo, designadamente através da definição e execução de programas com esse fim;

d) A redução e eliminação das assimetrias regionais e locais em matéria de conectividade, assegurando a sua existência nos territórios de baixa densidade e garantindo em todo o território nacional conectividade de qualidade, em banda larga e a preço acessível;

e) A existência de pontos de acesso gratuitos em espaços públicos, como bibliotecas, juntas de freguesia, centros comunitários, jardins públicos, hospitais, centros de saúde, escolas e outros serviços públicos;

f) A criação de uma tarifa social de acesso a serviços de Internet aplicável a clientes finais economicamente vulneráveis;

g) A execução de programas que garantam o acesso a instrumentos e meios tecnológicos e digitais por parte da população, para potenciar as competências digitais e o acesso a plataformas eletrónicas, em particular dos cidadãos mais vulneráveis;

h) A adoção de medidas e ações que assegurem uma melhor acessibilidade e uma utilização mais avisada, que contrarie os comportamentos aditivos e proteja os consumidores digitalmente vulneráveis;

i) A continuidade do domínio de Internet de Portugal «.PT», bem como das condições que o tornam acessível tecnológica e financeiramente a todas as pessoas singulares e coletivas para registo de domínios em condições de transparência e igualdade;

j) A definição e execução de medidas de combate à disponibilização ilícita e à divulgação de conteúdos ilegais em rede e de defesa dos direitos de propriedade intelectual e das vítimas de crimes praticados no ciberespaço.

Artigo 4.º Liberdade de expressão e criação em ambiente digital

1 – Todos têm o direito de exprimir e divulgar o seu pensamento, bem como de criar, procurar, obter e partilhar ou difundir informações e opiniões em ambiente digital, de forma livre, sem qualquer tipo ou forma de censura, sem prejuízo do disposto na lei relativamente a condutas ilícitas.

2 – A República Portuguesa participa nos esforços internacionais para que o ciberespaço permaneça aberto à livre circulação das ideias e da informação e assegure a mais ampla liberdade de expressão, assim como a liberdade de imprensa.

3 – Todos têm o direito de beneficiar de medidas públicas de promoção da utilização responsável do ciberespaço e de proteção contra todas as formas de discriminação e crime, nomeadamente contra a apologia do terrorismo, o incitamento ao ódio e à violência contra pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica, o assédio ou exploração sexual de crianças, a mutilação genital feminina e a perseguição.

4 – A criação de obras literárias, científicas ou artísticas originais, bem como as equiparadas a originais e as prestações dos artistas intérpretes ou executantes, dos produtores de fonogramas e de videogramas e dos organismos de radiodifusão gozam de especial proteção contra a violação do disposto no Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 63/85, de 14 de março, em ambiente digital.

Artigo 5.º Garantia do acesso e uso

É proibida a interrupção intencional de acesso à Internet, seja parcial ou total, ou a limitação da disseminação de informação ou de outros conteúdos, salvo nos casos previstos na lei.

Artigo 6.º Direito à proteção contra a desinformação

1 – O Estado assegura o cumprimento em Portugal do Plano Europeu de Ação contra a Desinformação, por forma a proteger a sociedade contra pessoas singulares ou coletivas, de jure ou de facto, que produzam, reproduzam ou difundam narrativa considerada desinformação, nos termos do número seguinte.

2 – Considera-se desinformação toda a narrativa comprovadamente falsa ou enganadora criada, apresentada e divulgada para obter vantagens económicas ou para enganar deliberadamente o público, e que seja suscetível de causar um prejuízo público, nomeadamente ameaça aos processos políticos democráticos, aos processos de elaboração de políticas públicas e a bens públicos.

3 – Para efeitos do número anterior, considera-se, designadamente, informação comprovadamente falsa ou enganadora a utilização de textos ou vídeos manipulados ou fabricados, bem como as práticas para inundar as caixas de correio eletrónico e o uso de redes de seguidores fictícios.

4 – Não estão abrangidos pelo disposto no presente artigo os meros erros na comunicação de informações, bem como as sátiras ou paródias.

5 – Todos têm o direito de apresentar e ver apreciadas pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social queixas contra as entidades que pratiquem os atos previstos no presente artigo, sendo aplicáveis os meios de ação referidos no artigo 21.º e o disposto na Lei n.º 53/2005, de 8 de novembro, relativamente aos procedimentos de queixa e deliberação e ao regime sancionatório.

6 – O Estado apoia a criação de estruturas de verificação de factos por órgãos de comunicação social devidamente registados e incentiva a atribuição de selos de qualidade por entidades fidedignas dotadas do estatuto de utilidade pública.

Artigo 7.º Direitos de reunião, manifestação, associação e participação em ambiente digital

1 – A todos é assegurado o direito de reunião, manifestação, associação e participação de modo pacífico em ambiente digital e através dele, designadamente para fins políticos, sociais e culturais, bem como de usar meios de comunicação digitais para a organização e divulgação de ações cívicas ou a sua realização no ciberespaço.

2 – Os órgãos de soberania e de poder regional e local asseguram a possibilidade de exercício dos direitos de participação legalmente previstos através de plataformas digitais ou outros meios digitais.

Artigo 8.º Direito à privacidade em ambiente digital

1 – Todos têm direito a comunicar eletronicamente usando a criptografia e outras formas de proteção da identidade ou que evitem a recolha de dados pessoais, designadamente para exercer liberdades civis e políticas sem censura ou discriminação.

2 – O direito à proteção de dados pessoais, incluindo o controlo sobre a sua recolha, o registo, a organização, a estruturação, a conservação, a adaptação ou alteração, a recuperação, a consulta, a utilização, a divulgação por transmissão, difusão ou qualquer outra forma de disponibilização, a comparação ou interconexão, a limitação, o apagamento ou a destruição, é assegurado nos termos legais.

Artigo 9.º Uso da inteligência artificial e de robôs

1 – A utilização da inteligência artificial deve ser orientada pelo respeito dos direitos fundamentais, garantindo um justo equilíbrio entre os princípios da explicabilidade, da segurança, da transparência e da responsabilidade, que atenda às circunstâncias de cada caso concreto e estabeleça processos destinados a evitar quaisquer preconceitos e formas de discriminação.

2 – As decisões com impacto significativo na esfera dos destinatários que sejam tomadas mediante o uso de algoritmos devem ser comunicadas aos interessados, sendo suscetíveis de recurso e auditáveis, nos termos previstos na lei.

3 – São aplicáveis à criação e ao uso de robôs os princípios da beneficência, da não-maleficência, do respeito pela autonomia humana e pela justiça, bem como os princípios e valores consagrados no artigo 2.º do Tratado da União Europeia, designadamente a não discriminação e a tolerância.

Artigo 10.º Direito à neutralidade da Internet

Todos têm direito a que os conteúdos transmitidos e recebidos em ambiente digital não sejam sujeitos a discriminação, restrição ou interferência em relação ao remetente, ao destinatário, ao tipo ou conteúdo da informação, ao dispositivo ou aplicações utilizados, ou, em geral, a escolhas legítimas das pessoas.

Artigo 11.º Direito ao desenvolvimento de competências digitais

1 – Todos têm direito à educação para a aquisição e o desenvolvimento de competências digitais.

2 – O Estado promove e executa programas que incentivem e facilitem o acesso, por parte das várias faixas etárias da população, a meios e instrumentos digitais e tecnológicos, por forma a assegurar, designadamente, a educação através da Internet e a utilização crescente de serviços públicos digitais.

3 – O serviço público de comunicação social audiovisual contribui para a educação digital dos utilizadores das várias faixas etárias e promove a divulgação da presente lei e demais legislação aplicável.

Artigo 12.º Direito à identidade e outros direitos pessoais

1 – Todos têm direito à identidade pessoal, ao bom nome e à reputação, à imagem e à palavra, bem como à sua integridade moral em ambiente digital.

2 – Incumbe ao Estado:

a) Combater a usurpação de identidade e incentivar a criação de plataformas que permitam o uso pelo cidadão de meios seguros de autenticação eletrónica;

b) Promover mecanismos que visem o aumento da segurança e da confiança nas transações comerciais, em especial na ótica da defesa do consumidor.

3 – Fora dos casos previstos na lei, é proibida qualquer forma de utilização de código bidimensional ou de dimensão superior para tratar e difundir informação sobre o estado de saúde ou qualquer outro aspeto relacionado com a origem racial ou étnica, as opiniões políticas, as convicções religiosas ou filosóficas, ou a filiação sindical, bem como dados genéticos, dados biométricos ou dados relativos à vida sexual ou orientação sexual de uma pessoa.

Artigo 13.º Direito ao esquecimento

1 – Todos têm o direito de obter do Estado apoio no exercício do direito ao apagamento de dados pessoais que lhes digam respeito, nos termos e nas condições estabelecidas na legislação europeia e nacional aplicáveis.

2 – O direito ao esquecimento pode ser exercido a título póstumo por qualquer herdeiro do titular do direito, salvo quando este tenha feito determinação em sentido contrário.

Artigo 14.º Direitos em plataformas digitais

1 – Na utilização de plataformas digitais, todos têm o direito de:

a) Receber informação clara e simples sobre as condições de prestação de serviços quando utilizem plataformas que viabilizam fluxos de informação e comunicação;

b) Exercer nessas plataformas os direitos garantidos pela presente Carta e na demais legislação aplicável;

c) Ver garantida a proteção do seu perfil, incluindo a sua recuperação se necessário, bem como de obter cópia dos dados pessoais que lhes digam respeito nos termos previstos na lei;

d) Apresentar reclamações e recorrer a meios alternativos de resolução de conflitos nos termos previstos na lei.

2 – O Estado promove a utilização pelas plataformas digitais de sinaléticas gráficas que transmitam de forma clara e simples a política de privacidade que asseguram aos seus utilizadores.

Artigo 15.º Direito à cibersegurança

1 – Todos têm direito à segurança no ciberespaço, incumbindo ao Estado definir políticas públicas que garantam a proteção dos cidadãos e das redes e sistemas de informação, e que criem mecanismos que aumentem a segurança no uso da Internet, em especial por parte de crianças e jovens.

2 – O Centro Nacional de Cibersegurança promove, em articulação com as demais entidades públicas competentes e parceiros privados, a formação dos cidadãos e empresas para adquirirem capacitação prática e beneficiarem de serviços online de prevenção e neutralização de ameaças à segurança no ciberespaço, sendo para esse efeito dotado de autonomia administrativa e financeira.

Artigo 16.º Direito à liberdade de criação e à proteção dos conteúdos

1 – Todos têm direito à livre criação intelectual, artística, científica e técnica, bem como a beneficiarem, no ambiente digital, da proteção legalmente conferida às obras, prestações, produções e outros conteúdos protegidos por direitos de propriedade intelectual.

2 – As medidas proporcionais, adequadas e eficazes com vista a impedir o acesso ou a remover conteúdos disponibilizados em manifesta violação do direito de autor e direitos conexos são objeto de lei especial.

Artigo 17.º Direito à proteção contra a geolocalização abusiva

1 – Todos têm direito à proteção contra a recolha e o tratamento ilegais de informação sobre a sua localização quando efetuem uma chamada obtida a partir de qualquer equipamento.

2 – A utilização dos dados da posição geográfica do equipamento de um utilizador só pode ser feita com o seu consentimento ou autorização legal.

Artigo 18.º Direito ao testamento digital

1 – Todas as pessoas podem manifestar antecipadamente a sua vontade no que concerne à disposição dos seus conteúdos e dados pessoais, designadamente os constantes dos seus perfis e contas pessoais em plataformas digitais, nos termos das condições contratuais de prestação do serviço e da legislação aplicável, inclusive quanto à capacidade testamentária.

2 – A supressão póstuma de perfis pessoais em redes sociais ou similares por herdeiros não pode ter lugar se o titular do direito tiver deixado indicação em contrário junto dos responsáveis do serviço.

Artigo 19.º Direitos digitais face à Administração Pública

Perante a Administração Pública, a todos é reconhecido o direito:

a) A beneficiar da transição para procedimentos administrativos digitais;

b) A obter informação digital relativamente a procedimentos e atos administrativos e a comunicar com os decisores;

c) À assistência pessoal no caso de procedimentos exclusivamente digitais;

d) A que dados prestados a um serviço sejam partilhados com outro, nos casos legalmente previstos;

e) A beneficiar de regimes de «dados abertos» que facultem o acesso a dados constantes das aplicações informáticas de serviços públicos e permitam a sua reutilização, nos termos previstos na lei;

f) De livre utilização de uma plataforma digital europeia única para a prestação de acesso a informações, nos termos do Regulamento (UE) 2018/1724 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 2 de outubro de 2018.

Artigo 20.º Direito das crianças

1 – As crianças têm direito a proteção especial e aos cuidados necessários ao seu bem-estar e segurança no ciberespaço.

2 – As crianças podem exprimir livremente a sua opinião e têm a liberdade de receber e transmitir informações ou ideias, em função da sua idade e maturidade.

Artigo 21.º Ação popular digital e outras garantias

1 – Para defesa do disposto na presente lei, a todos são reconhecidos os direitos previstos na legislação referente à ação popular, devidamente adaptada à realidade do ambiente digital.

2 – O Estado apoia o exercício pelos cidadãos dos direitos de reclamação, de recurso e de acesso a formas alternativas de resolução de litígios emergentes de relações jurídicas estabelecidas no ciberespaço.

3 – As pessoas coletivas sem fins lucrativos que se dediquem à promoção e defesa do disposto na presente Carta têm o direito a obter o estatuto de utilidade pública, nos termos da legislação aplicável às entidades de caráter cultural.

4 – Os direitos assegurados em processo administrativo em suporte eletrónico, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 64.º do Código do Procedimento Administrativo, são objeto de legislação própria, a aprovar no prazo de 180 dias após a entrada em vigor da presente lei.

Artigo 22.º Direito transitório

Até à entrada em vigor da lei prevista no n.º 2 do artigo 16.º são aplicáveis as normas vigentes que regulam o impedimento do acesso ou remoção de conteúdos disponibilizados em violação do direito de autor e direitos conexos.

Artigo 23.º Entrada em vigor

A presente lei entra em vigor 60 dias após a sua publicação.

Aprovada em 8 de abril de 2021.

O Presidente da Assembleia da República, Eduardo Ferro Rodrigues.

Promulgada em 8 de maio de 2021.

Publique-se.

O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.

Referendada em 11 de maio de 2021.

O Primeiro-Ministro, António Luís Santos da Costa.

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