A exibição da prova eletrônica em juízo. Necessidade de alteração das regras do processo civil?
Com o aumento da capacidade dos computadores para processar informações e da utilização cada vez em maior escala das ferramentas de comunicação telemática, advogados, juízes e profissionais do Direito de um modo geral vão se deparar com significantes problemas relacionados à preservação da prova eletrônica. Todo o processamento de uma informação por computadores ou a comunicação realizada entre eles, quer seja na forma do envio de um e-mail, na publicação de uma notícia em um web site ou na inserção de informações em uma base de dados, deixa registros na forma de arquivos que, em determinadas situações, podem ser relevantes para a prova de um determinado fato jurídico. Por conseguinte, arquivos formados por mensagens de e-mail, arquivos do Word, arquivos em HTML ou qualquer outra linguagem de programação para confecção de páginas web, podem ser imprescindíveis à demonstração da existência e verificação de um fato jurídico, e as partes litigantes em processo judicial podem requerer sua preservação para posterior apresentação e apreciação pelo juiz.
A produção em juízo da prova eletrônica tem amparo legal em razão da regra adotada pelo nosso Código de Processo Civil, no seu artigo 332, que admite «todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos» para a prova da verdade de fatos. Vigora, pois, no processo civil brasileiro, a regra da atipicidade dos meios de prova, significando que os fatos podem ser provados por qualquer meio, ainda que não os típicos (depoimento pessoal, confissão, exibição de documento ou coisa, testemunha, perícia ou inspeção judicial). Ademais disso, o documento eletrônico produzido de acordo com as regras da Medida Provisória 2.200-2/01, cuja autenticidade possa ser certificada por órgão competente vinculado à estrutura da ICP-Brasil, pelo sistema de chaves pública e privada, tem caráter de documento público ou particular (art. 10), presumindo-se verdadeiro quanto ao signatário (par. 1º).
Nesse sentido, sendo válida a apresentação de prova na forma eletrônica, para a comprovação de algum fato relevante ao julgamento de um processo judicial, e dada a utilização massificada das tecnologias da informação na sociedade atual, assistiremos a uma fase onde as requisições para produção desse tipo de prova passarão a ser uma constante nas lides cartorárias. Sérios prejuízos para uma parte decorrente da perda de informações potencialmente importantes podem se concretizar se não adotadas medidas para a sua preservação.
Acontece que a prova eletrônica em tudo difere da que é produzida em papel, em razão de suas características de intangibilidade, forma, volume e persistência. A informação armazenada eletronicamente é caracterizada pelo seu enorme potencial de volume quando comparada com aquela que é acondicionada em suportes tangíveis. Grandes corporações medem a capacidade de armazenamento de suas bases de dados em terabytes, unidade que isoladamente representa o equivalente a 500 milhões de páginas de texto escrito. Essas mesmas empresas recebem milhões de e-mails mensalmente. Além disso, a informação em formato eletrônico é também dinâmica: o mero ato de ligar ou desligar um computador pode alterar a informação que ele armazena. Os computadores quando em funcionamento reescrevem e deletam informação, quase sempre sem o conhecimento específico do operador. Uma terceira e importante característica é que a informação armazenada eletronicamente, ao contrário de textos escritos em papel, pode se tornar incompreensível quando separada do sistema que a criou.
Essas e outras diferenças fazem com que a apresentação em juízo da prova eletrônica se torne um processo muito mais complicado, demorado e dispendioso do que a simples juntada aos autos do processo de um documento na forma de papel. Sobretudo a questão da preservação da prova eletrônica, dado o seu caráter dinâmico, ganha importância nesse contexto. Essa realidade impõe que as normas processuais que regulam a produção da prova em juízo – especificamente o incidente de «exibição de documento ou coisa», previsto nos arts. 355 a 363 do CPC – sofram alteração para levar em conta a evolução das tecnologias da informação.
Com efeito, não parece sensato pretender estender o conceito de «documento» presente no art. 355 para englobar a exibição da prova eletrônica, pois a inteligência do Código é exageradamente restrita e construída dentro de uma concepção relacionada com a prova em forma de papel. A lei processual deve ser alterada para tratar a informação armazenada eletronicamente como categoria de prova distinta de «documentos» e «coisas».
A distinção entre as diversas espécies da prova será importante no que se refere à administração da coleta e submissão ao juízo da informação armazenada eletronicamente. Por exemplo, a parte ou terceiro ao cumprir com o dever de exibição de um arquivo eletrônico deve apresentá-lo no seu formato original (formato «nativo»), tal qual se encontre presente em seu sistema informático, ou deve oferecê-lo em roupagem que possa ser revisado pela outra parte ou pelo autoridade judiciária? Se o arquivo na moldura original não puder, por questões técnicas, ser facilmente compreendido, quem deve arcar com os custos da transmutação? A regra processual precisa ser alterada, portanto, para permitir à parte que requer a exibição especificar a forma da produção da prova eletrônica em juízo. Do contrário, salvo ordem judicial especificando esse aspecto, a parte a quem cabe o dever de exibição pode apresentar o arquivo solicitado na forma de arquivo «nativo», com todos os entraves que isso pode gerar.
Mas não é somente essa a dificuldade que surge quando se trata de obtenção, preservação e apresentação da informação armazenada em forma eletrônica, ante juízes e tribunais. O problema de lidar com informação privilegiada, assim considerada aquela submetida a algum privilégio legal ou constitucional de respeito à privacidade e sigilo profissional, dentre outros, também vai se tornar muito mais sensível. Na coleta da prova eletrônica, dado que o volume da informação apreendida em resposta a uma requisição judicial pode ser enorme, e que certas formas em que é produzida pode dificultar a análise de seu conteúdo, vai ser sempre mais difícil separar pedaços de informação privilegiada do restante do manancial informacional produzido e trazido a juízo em respeito à uma ordem judicial (de exibição ou preservação de prova) (1).
Outro ponto que certamente necessitará ser alterado na lei, em relação à prova eletrônica, diz respeito às hipóteses em que a parte pode se recusar a efetuar a exibição. O acesso a um dado eletrônico nem sempre é tão simples como a procura de um livro ou documento guardado em arquivo físico. Uma parte ou terceiro pode ser dispensado de produzir prova eletrônica em função dos altos custos e dificuldades que possa representar essa produção. Por exemplo, a informação solicitada pode já não mais estar disponível em razão da existência de sistema informático que faça eliminação periódica de arquivos, por estar contida em sistema não mais em uso, em back-up exclusivo para casos de desastres etc. Se uma das partes requerer a produção de dados em tais circunstâncias, à outra parte deveria ser dada oportunidade de mostrar que seu acesso não é razoável, dados os custos e dificuldades envolvidas na sua coleta. Um juiz pode considerar essas dificuldades e impor as condições para a produção da prova, inclusive que as despesas sejam suportadas pela parte que a requereu ou pode, por outro lado, entender que a prova requerida não é realmente útil e necessária para o julgamento da lide, e simplesmente indeferir sua produção (2).
Ainda podemos citar outro aspecto delicado quanto à produção de prova eletrônica em juízo. Diz respeito a identificar táticas de litigância baseadas em má-fé. Uma parte ou terceiro pode simplesmente destruir as informações contidas em seu computador, relacionadas com as questões discutidas em juízo e objeto de pedido de exibição, assim que toma conhecimento ou desconfia que poderão ser requisitadas. Em se tratando de informação armazenada eletronicamente, vai sempre ser mais difícil identificar se a perda das informações se originou de um ato intencional e doloso da parte ou foi resultante do processo normal de funcionamento do sistema informático.
Uma das características dos sistemas informáticos é que eles funcionam reciclando, reescrevendo e alterando a informação armazenada eletronicamente. Esse é um problema que não se tem de lidar quando se cuida da preservação de uma prova na forma estática representada pelo papel; a sua destruição não pode ocorrer a não ser como resultado de um ato consciente de uma determinada pessoa. Os sistemas computacionais, ao contrário, alteram e destroem parte da informação armazenada como conseqüência de suas operações de rotina, fazendo com que o risco de perda da informação eletrônica seja significantemente superior ao da informação inserida em suporte físico (papel). Por essa razão, a lei processual deve conter exceções quando se tratar de impor sanções à parte que deixar de exibir informação armazenada eletronicamente, nos casos e que fique demonstrado que a sua perda foi resultado de uma operação de rotina do sistema informático e que não houve má-fé (3) .
Essas apenas algumas questões que devem ser discutidas e melhor analisadas quando se trata da produção e exibição da prova eletrônica, diante da nova realidade do desenvolvimento das tecnologias da informação. Em abril do ano passado, a Suprema Corte dos EUA aprovou um relatório contendo sugestões de alteração em regras do Federal Rules of Civil Procedure, na parte que trata do procedimento do Discovery. Essas sugestões foram encaminhadas ao Congresso e entraram em vigor em 1º de dezembro deste ano. É claro que não poderíamos simplesmente reproduzir para o Direito interno essas regras que alteraram o procedimento do Discovery , em razão das diferenças essenciais entre o Common Law e o nosso sistema jurídico. Na fase do Discovery, as partes têm que revelar às outras as informações e documentos que dão suporte às alegações autorais e da defesa; cada parte tem que fornecer o nome e qualificação das pessoas que pretende ouvir e cópia de todos os documentos que estão em sua custódia, que pretenda utilizar em sua defesa processual . É portanto uma realidade procedimental completamente diferente da nossa sistemática processual civil, o que impede esse tipo de solução. Mas as alterações legais que lá foram feitas revelam que os norte-americanos estão na nossa frente no que diz respeito ao problema da coleta, preservação e apresentação da prova eletrônica .
Isso serve ao menos para despertar entre nós a necessidade de começar por aqui a discussão sobre o assunto. De nossa parte, podemos recomendar que, como primeira medida, pode ser retocada a redação do art. 355 do CPC, para que passe também a fazer referência à informação armazenada eletronicamente. Sua redação ficaria assim: «O juiz pode ordenar que a parte exiba documento, coisa ou informação armazenada eletronicamente que se ache em seu poder».
(1) O art. 363 do CPC estabelece que a parte e o terceiro podem se recusar a exibir documento ou coisa em juízo, quando a exibição acarretar a divulgação de fatos concernentes à própria vida da família (inc. I) ou a cujo respeito, por estado ou profissão, devam guardar segredo (IV).
(2) É forçoso reconhecer que o art. 363 do CPC já contém norma autorizando a recusa da exibição de prova diante de «outros motivos graves», segundo prudente arbítrio do juiz.
(3) Assim, nessas hipóteses de circunstâncias especiais, em que fique provado que a parte falhou em apresentar uma prova eletrônica em razão da perda de informação resultante de uma operação de rotina do sistema informático, e que estava de boa-fé, o Juiz pode deixar de considerar verdadeiros os fatos que a outra parte pretendia provar. Se for um terceiro que faltar com o dever de exibição em razão das mesmas circunstâncias, o Juiz deixa de atribuir responsabilidade por crime de desobediência – sanção hoje prevista no art. 36
Recife, 21.09.06