O fenômeno do superendividamento – Inexistência de direito do consumidor à renegociação e de justa causa para intervenção judicial nos contratos
Demócrito Reinaldo Filho
Juiz de Direito no Recife (32ª. Vara Cível)
1. Introdução
Os reflexos da concessão de crédito de forma fácil e ilimitada começaram a aparecer perante o Judiciário, ao longo deste ano, na forma de pedidos de revisão de contratos com fundamento no “superendividamento” dos consumidores. O fenômeno se instalou a partir da oferta abundante do crédito fácil no país. Empréstimos consignados, empréstimos pessoais, cartões de crédito, crédito direto ao consumidor e outros tipos formam uma extensa e variada gama de modelos contratuais que podem ser utilizados por pessoas físicas para tomar dinheiro emprestado aos bancos e financeiras. O resultado não raro é que as pessoas não usam o crédito de forma consciente e chegam à falência financeira.
Para tratar desse problema social, alguns juristas discutem a possibilidade de criar barreiras legais contra o superendividamento1, enquanto que outros advogam o caminho imediato da via judicial para, por meio da intervenção nos contratos, propiciar reparcelamento de dívidas, alongamento de prazos ou facilitação das condições de pagamento e diminuição de juros. O remédio judicial, para esse desiderato, aparece inclusive sob uma nova roupagem: “ação de readaptação contratual”. Em regra, argumenta-se que as empresas financeiras é que devem responder pelo endividamento do consumidor, pois a elas é que deve ser carreado o ônus de averiguar o potencial de endividamento do tomador do crédito. Outro argumento central para o pedido de intervenção contratual reside em apelar para a necessidade de proteção material do consumidor endividado, de forma a garantir-lhe condições mínimas para sobreviver.
No presente trabalho, procuramos demonstrar que não existe base legal para se requerer a renegociação de dívidas com fundamento no superendividamento do consumidor e que a intervenção judicial nos contratos pode afetar a segurança jurídica dos negócios financeiros. Também defendemos que não existe qualquer risco de comprometimento da subsistência material das pessoas com o pagamento de dívidas, em razão da ampla proteção patrimonial que lhes é conferida pelas leis brasileiras. Por fim, apontamos que o caminho da conciliação com as instituições financeiras é a melhor solução para renegociação de dívidas e facilitação no pagamento de obrigações.
2. A expansão do crédito no Brasil
Com o ambiente de estabilização dos preços proporcionado pelo Plano Real em 1994, as operações de crédito no Brasil passaram a funcionar como estimuladoras do crescimento econômico. Uma vez controlada a inflação, as instituições financeiras, que antes extraíam sua margem de lucro essencialmente da captação de depósitos, passaram a depender das operações de crédito. A expansão do crédito foi mais acentuada nos últimos cinco anos, devido à descoberta de uma parcela da população – aquela considerada como de baixa renda – antes excluída do sistema formal do crédito, que se tornou alvo preferencial das financeiras2. Se a expansão do crédito teve sua importância para o crescimento sócio-econômico do país, já que fomentou o consumo de bens e serviços, parece que agora os efeitos da liberação desmedida se fazem sentir. A prova disso são as ações de consumidores “superendividados” que, conforme se mencionou, começam a bater às portas dos tribunais à procura de remédio para sua situação de comprometimento de renda.
3. A posição dos consumeristas em favor do direito do consumidor (super)endividado à renegociação do débito
O consumidor superendividado, de uma maneira geral, é todo aquele que perdeu a capacidade de pagamento das dívidas contraídas3. Sem qualquer perspectiva de adimplemento, vem a juízo requerer uma revisão geral dos contratos de crédito para o fim de lhe ser assegurado reparcelamento, diminuição dos juros ou redução do próprio montante da dívida. Em regra, argumenta-se que a empresa financeira demandada mostrou-se negligente, assumindo um risco exagerado ao conceder crédito em valores superiores à capacidade de endividamento (do tomador). Parte-se da concepção de que o “superendividamento” é um fenômeno que decorre da “concessão irresponsável do crédito” pelas empresas financeiras e “não se trata de um simples incumprimento contratual ou apenas mais uma hipótese de falta de pagamento de dívidas”, mas um verdadeiro problema social que tem que ser tratado pelo Judiciário com um “olhar diferenciado”. O direito ao reparcelamento das prestações, nessa acepção, decorre da proteção judicial que deve ser dada ao consumidor superendividado, sobretudo diante da noção de que a financeira comete abuso de direito, ao conceder crédito de maneira irresponsável, sem averiguar previamente (através de pesquisa em cadastros de proteção ao crédito e outros meios) sua capacidade de reembolso. Defende-se que “o fornecedor que concede crédito a pessoa que não tem condições de cumprir o contrato excede manifestamente as finalidades econômicas e sociais de sua atividade”, em violação ao que estabelece o art. 187 do C.C.
Em aditamento à tese da irresponsabilidade da financeira que concede crédito sem averiguar a real capacidade de endividamento do consumidor, argumenta-se que o consumidor superendividado tem direito garantido à repactuação das cláusulas, com base no dever de cooperação do outro contraente, que decorre do art. 422 do C.C. Invoca-se também o art. 6º, V, do CDC, que estabelece como direito básico do consumidor a modificação de cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas. Invoca-se, ainda, como fundamento para a readaptação judicial do contrato, o art. 2º., § 2º., I, da Lei n. 10.820/2003, o qual limita os descontos e prestações em folha de pagamento a trinta por cento da remuneração do tomador do empréstimo.
Além de buscar fundamento no Código de Defesa do Consumidor (CDC) e no Código Civil, os que defendem a readaptação contratual enxergam na própria Constituição Federal a regra maior consagradora do direito fundamental do consumidor superendividado: o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º., inc. III, da CF). Como se sabe, a concepção da teoria social do contrato justifica a aplicação de normas de direito público para regular as relações entre particulares. Por esse viés, os contratos sofrem a interferência de princípios e normas constitucionais, que podem se sobrepor às regras de cunho obrigacional formadas no ajuste privado, quebrando a hegemonia do princípio da autonomia da vontade. Pela via da constitucionalização do Direito Civil, incrementam-se normas de direito público, editadas em prol de interesses coletivos, no âmbito das relações contratuais, permitindo que os valores relacionados à proteção da pessoa humana prevaleçam sobre interesses patrimoniais.
Essas formulações teóricas utilizadas para o pedido de “readaptação” dos contratos dos consumidores “superendividados” têm o respaldo de parte da doutrina, sobretudo entre os consumeristas, os quais sustentam a renegociação das dívidas como uma prerrogativa implícita a toda e qualquer relação contratual no ordenamento brasileiro, extraída não somente da Constituição (do princípio da dignidade da pessoa humana), como também dos deveres de cooperação, lealdade, boa-fé e solidariedade que devem ser observados pelos contratantes. Realmente, a ideia da renegociação como um dever do fornecedor do crédito na cooperação com a outra parte pode ser observada nos ensinamentos da grande doutrinadora Cláudia Lima Marques, que assinala:
“Por fim, mencione-se que a doutrina atual germânica considera ínsito no dever de cooperar positivamente, o dever de renegociar (Neuverhandlungspflichte) as dívidas do parceiro mais fraco, por exemplo, em caso de quebra da base objetiva do negócio. Cooperar aqui é submeter-se às modificações necessárias à manutenção do vínculo (princípio da manutenção do vínculo do art. 51, § 2. º do CDC) e à realização do objetivo comum e do contrato”.
Acrescenta a insigne doutrinadora, expondo a noção da renegociação como dever contratual:
“Será dever contratual anexo, cumprindo na medida do exigível e do razoável para a manutenção do equilíbrio contratual, para evitar a ruína de uma das partes (exceção da ruína aceita pelo art. 51, § 2º. do CDC) e para evitar a frustração do contrato: o reflexo será a adaptação bilateral e cooperativa das condições do contrato”4.
Bruno Pandori Giancoli também defende a situação de superendividamento do consumidor como justificativa para a revisão dos contratos de crédito:
“Com efeito a ação revisional por aplicação do superendividamento pode ser encarada como mecanismo judicial apto a tratar das dívidas do consumidor de maneira a evitar sua ruína completa e, se possível, restabelecer uma situação de consumo sustentável”5.
Carolina Curi Fernandes, da mesma forma, destaca que o direito do consumidor superendividado à repactuação decorre do dever de cooperação do outro “parceiro obrigacional” para ser alcançada a reestruturação da dívida e o equilíbrio contratual:
“Os deveres de cooperação e renegociação pressupõem que, para que se possa alcançar a reestruturação financeira do superendividado, faz-se imprescindível a cooperação e compreensão do outro parceiro obrigacional envolvido no negócio, ou seja, o fornecedor do crédito. Diante da situação do consumidor superendividado, deverá o fornecedor do crédito atuar no sentido de cooperar possibilitando a renegociação do débito tendo em vista o restabelecimento financeiro do consumidor e equilíbrio contratual”6 (grifo nosso).
4. Inexistência de risco de comprometimento da subsistência material do devedor para pagamento de dívidas: a proteção patrimonial conferida pelas leis brasileiras
Em que pesem as manifestações doutrinárias expostas, temos que a renegociação da(s) dívida(s) do consumidor superendividado não pode ser imposta às instituições financeiras e bancárias como um dever contratual implícito, através da intervenção judicial nas manifestações de vontade dos particulares, modificando condições de pagamento de dívidas, prazos e encargos. Eventual interferência do Poder Público nos negócios jurídicos privados, sob essa roupagem, pode trazer conseqüências sociais ainda mais nefastas, em termos de quebra da segurança jurídica dos negócios, violação à liberdade de contratar e afronta ao princípio do ato jurídico perfeito, valores igualmente protegidos pela ordem constitucional.
O erro inicial de análise do problema, com a devida vênia, reside em buscar no princípio da dignidade da pessoa humana e na garantia de subsistência material (noção do “mínimo existencial”7) fundamento para a intervenção judicial nos contratos com o objetivo de tratar das dívidas do consumidor. Não se nega a hierarquia da norma constitucional, diante da posição superior da Constituição, que pode versar sobre relações privadas. O direito constitucional é fonte suprema e deve direcionar todo o direito, seja ele público ou privado. Os princípios e valores constitucionais devem nortear as relações privadas tendo em vista a proteção e desenvolvimento da pessoa humana, acima de qualquer outro valor. Apenas observamos que o endividamento do consumidor, independentemente da extensão da dívida, não pode servir como justa causa para intervenção judicial nas relações contratuais a que esteja ligado, pois a sua subsistência (e de sua família) e, portanto, a preservação da dignidade de sua pessoa, está garantida por outras normas existentes na nossa ordem jurídica, que limitam a expropriação de bens do patrimônio do devedor para pagamento de dívidas.
É que a ordem jurídica brasileira, diferentemente de outros sistemas legais, está impregnada de regras que protegem o indivíduo contra a excussão patrimonial excessiva para a satisfação de dívidas. O legislador brasileiro sempre se preocupou em criar mecanismos para atenuar o impacto do processo executório sobre as condições de subsistência do devedor e de sua família. Preocupou-se em preservar uma dignidade material básica do devedor, evitando que o processo de execução possa representar uma ameaça à sua subsistência. Prova disso é a existência da impenhorabilidade salarial presente no inc. IV do art. 649 do CPC8, bem como as outras situações de imunidade executórias delineadas nos outros incisos do mesmo artigo9. Cite-se ainda a impenhorabilidade imobiliária disciplinada pela Lei n. 8.009, de 29 de março de 1990, que cuidou do chamado “bem de família”, vedando a penhora de imóvel residencial de casal ou entidade familiar por dívida de qualquer natureza (art. 1º.) e estendendo a garantia da impenhorabilidade a todos os equipamentos e móveis que guarnecem a casa (art. 2º.)10. Ainda quando se elimina a via executória para o pagamento da dívida, nos casos em que o tomador do crédito aceita voluntariamente, em contrato, que as mensalidades do empréstimo sejam adimplidas mediante desconto direto em folha de pagamento (modalidade conhecida como “empréstimo consignado”), a Lei limita os descontos a trinta por cento da sua remuneração (art. 2º., § 2º., I, da Lei n. 10.820/2003)11. Se o desconto é feito em conta bancária onde o contraente recebe o seu salário (“conta salarial”), mesmo assim não há risco de que sua subsistência fique comprometida, pois a jurisprudência tem entendido ser abusiva a cláusula inserida no contrato de empréstimo que versa autorização para o banco debitar ou resgatar (da conta-corrente ou de qualquer aplicação financeira) valor superior a 30% do salário creditado mensalmente. A abusividade da cláusula (por infração ao inc. IV do art. 51 c/c parágrafo 1º. do mesmo artigo), nessa hipótese, reside na falta de limites para o desconto, quando absorve toda ou parte substancial da verba salarial do correntista (consumidor)12.
Como se observa, o consumidor de serviços bancários e creditícios já está completamente imunizado contra qualquer forma de excussão patrimonial degradante. Nós já dispomos de um processo de execução “humanizado”, resultante da imunidade patrimonial conferida a certos bens (salário e imóvel residencial único, por exemplo), bem como regras que limitam a liberdade do consumidor ao contratar o pagamento de empréstimos mediante descontos em folha salarial ou conta bancária. Portanto, a concepção de que o Estado deve intervir nas relações contratuais em que uma das partes se mostra “superendividada”, a pretexto de garantir a ela um mínimo de condições materiais para subsistência pessoal e de sua família (preservando-se assim sua dignidade como pessoa humana), compreende evidente equívoco. Em razão da ampla proteção patrimonial que o nosso sistema de leis confere ao devedor, não existe espaço para que perca as condições de subsistência e desenvolvimento material.
Diga-se mais: o nosso sistema jurídico é tão desenvolvido no que tange à proteção da pessoa do consumidor (devedor) que lhe confere garantias que vão muito além da simples dignidade material, alcançando inclusive a órbita de sua proteção moral. Com efeito, o art.42 do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90) impede que, na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente seja exposto a ridículo ou submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça. Por sua vez, o art. 71 do mesmo diploma legal, visando justamente assegurar a efetividade do artigo anterior, define o tipo penal aplicável à cobrança excessiva ou constrangedora, ao estabelecer que se considera crime contra as relações de consumo “utilizar, na cobrança de dívidas, de ameaça, coação, constrangimento físico ou moral, afirmações falsas, incorretas ou enganosas ou de qualquer outro procedimento que exponha o consumidor, injustificadamente, a ridículo ou interfira no seu trabalho, descanso ou lazer”.
Portanto, quer se interprete o princípio em exame sob a ótica da proteção material do indivíduo, quer se observe nele uma blindagem contra práticas que interfiram na sua esfera moral, o fato é que o acúmulo de dívidas não constitui por si só causa suficiente para se considerar violada a dignidade da pessoa humana e, por conseguinte, se operar a intervenção contratual para modificar o que as partes livremente estabeleceram. O acúmulo excessivo de dívidas, por si só, não ameaça a subsistência material do devedor e, por via de consequência, não é suficiente para afetar sua dignidade, assim considerada a preservação de um “mínimo existencial”. Só ocorre o comprometimento da subsistência do devedor (e de sua família) quando lhe são tomados efetivamente os rendimentos salariais para pagamento das obrigações contratuais. A simples existência da dívida, no entanto, não pode ser concebida como elemento gerador de afronta ao princípio da dignidade humana. Por outro lado, estando o devedor protegido contra meios excessivos ou que de qualquer forma o submeta a constrangimento, também não se pode alegar que sua moral esteja em risco por conta da situação de (super)endividamento.
5. Inexistência de previsão legal para o parcelamento de dívidas por meio da intervenção judicial nos contratos
Embora se saiba que a liberdade de contratar deve ser exercida em razão e nos limites da função social do contrato (art. 421 do C.C.), tem-se que evitar um elevado grau de ingerência do Poder Público nas manifestações de vontade dos particulares. O limite da autonomia da vontade ainda continua a ser ditado pela ordem jurídica, pelos princípios da ordem pública e os bons costumes (art. 122 do C.C.). Nesse ponto, vale trazer à consideração o ensinamento de Caio Mário Pereira, segundo o qual “uma vez concluído o contrato, passa a constituir fonte formal de direito, autorizando qualquer das partes a mobilizar o aparelho coator do Estado para fazê-lo respeitar tal como está, e assegurar sua execução segundo a vontade que presidiu a sua constituição”13.
Em suma, o devedor não tem direito à “restruturação financeira” do contrato com base unicamente em sua situação de superendividamento, à falta de previsão legal. Não se pode extrair do inc. VIII do CDC (Lei 8.078/09), o qual estabelece ser um direito básico do consumidor a “facilitação da defesa dos seus direitos”, diretriz no sentido de obrigar a instituição financeira a renegociar as parcelas mensais do contrato. O STJ já teve inclusive a oportunidade de concluir pela inexistência desse dever da financeira, ao julgar um caso específico que envolvia contrato de financiamento estudantil14. O estudante pedia que fosse renegociada a dívida, mas a 1ª. Turma do STJ entendeu que a instituição financeira não é obrigada a renegociar a dívida, no caso de inadimplemento, por não haver previsão legal que ampare o pedido de renegociação15. Para o STJ, a instituição financeira tem poder discricionário para decidir sobre a renegociação, ou seja, pode ou não aceitar a proposta oferecida pelo estudante, segundo seu juízo de conveniência e oportunidade, desde que respeitadas as condições previstas na lei.
Sem previsão legal para renegociação da dívida, o tomador de crédito inadimplente terá à sua disposição apenas a possibilidade de parcelamento prevista no art. 745-A do CPC. Todavia, a previsão legal para parcelamento da dívida só existe quando já iniciado o processo judicial de execução para cobrança da dívida, mesmo assim em bases específicas. O direito de pagamento parcelado (em 06 parcelas mensais) é condicionado ao depósito antecipado de 30% do valor da dívida, nos termos do dispositivo citado:
“Art. 745-A: No prazo para embargos, reconhecendo o crédito do exequente e comprovando o depósito de trinta por cento (30%) do valor em execução, inclusive custas e honorários de advogado, poderá o executado requerer seja admitido a pagar o restante em até seis (6) parcelas mensais, acrescidas de correção monetária e juros de um por cento (1%) ao mês”.
Essa é a única previsão legal que confere ao devedor um tipo de benefício para o alongamento da dívida. Afora essa disposição, não existe possibilidade de se alterar as condições de pagamento sem a aquiescência do outro contraente.
6. A seletividade na concessão do crédito
Não se diga, por fim, que o direito à reestruturação financeira ou readaptação do contrato pode ter por fundamento a “concessão irresponsável do crédito” pelas empresas financeiras, ao não investigarem adequadamente a capacidade de endividamento do consumidor.
As instituições que integram o sistema financeiro nacional, e que portanto são fiscalizadas pelo Banco Central, são obrigadas a operar observando princípios da seletividade, garantia e diversificação dos riscos, sendo-lhes vedada a concessão de crédito sem a constituição de título adequado e representativo da dívida16. Essas diretrizes, todavia, não foram concebidas como uma garantia para o consumidor, mas para evitar risco sistêmico, isto é, para reduzir os riscos de insolvência do sistema financeiro. Se os bancos começam a emprestar dinheiro sem as devidas garantias de recebimento futuro do capital emprestado, podem ficar com ativos de má-qualidade e não ter como honrar os compromissos representados pelo seu passivo. O que se buscou, portanto, foi evitar práticas bancárias perigosas ou inadequadas, para não comprometer o sistema financeiro.
As instituições financeiras utilizam-se de bancos de dados, públicos e privados, para a avaliação do risco de crédito, ou seja, da probabilidade de recebimento do montante emprestado ao cliente (consumidor de serviços bancários). De acordo com a avaliação que é feita pelo banco, acessando esses cadastros, estabelece-se a taxa de juros a ser cobrada em um negócio bancário específico ou mesmo o banco pode deixar de conceder o empréstimo. A inadimplência é um custo implícito no preço do crédito e, quanto maior a certeza do pagamento, menor a taxa cobrada do tomador final e menor risco para o banco. Ao conhecer melhor o potencial do tomador do crédito, através do recurso aos registros de suas atividades bancárias prévias que integram a base de dados, os bancos diminuem os riscos das operações de crédito. As informações são obtidas junto a empresas e organizações que mantêm esses bancos de dados informacionais.
Entretanto, mesmo realizando essas consultas e investigando o perfil do consumidor ou seu histórico de pagamento, o banco não tem como evitar complemente os riscos do negócio nem tampouco avaliar completamente a capacidade de endividamento. O concedente procede a uma análise da capacidade econômica do tomador do empréstimo, mas apenas como prática administrativa para diminuir os riscos quanto ao reembolso do capital emprestado, não como obrigação legal.
7. O caráter conciliatório da renegociação de dívidas
Como já observado, não existe nenhuma norma jurídica, nem princípio legal ou constitucional que imponha à uma instituição financeira o dever de renegociar as condições contratuais, sempre que o devedor pretender ou para facilitar o pagamento da dívida. A renegociação de dívidas ou alteração da forma e condições de obrigações de pagamento somente pode ser almejada por meio de composição amigável entre os contraentes, nunca como dever/direito de um deles, se não previsto expressamente no instrumento contratual. Inclusive o Estado, através do Poder Judiciário, pode desenvolver programas específicos de mediação/conciliação com a finalidade de tratamento, acompanhamento e resolução amigável de conflitos que envolvam consumidores em situação de superendividamento, de forma a reinseri-los no mercado de consumo sem restrições creditícias17.
O que se tem observado, nesses programas de conciliação de conflitos envolvendo consumidores superendividados, é que as empresas e instituições financeiras quase sempre concordam em renegociar as dívidas, alongando os prazos para pagamento, diminuindo juros e os valores das mensalidades. Quando se convencem da incapacidade financeira do consumidor de pagar suas dívidas atuais e futuras nos respectivos vencimentos, e também como sabem que a tentativa de cobrança pela via judicial muitas vezes resulta infrutífera – em razão da ampla proteção dada pela lei brasileira ao patrimônio do devedor -, aceitam reduzir substancialmente o montante da dívida18.
8. Conclusões:
1ª. O consumidor, ainda que em situação de (super)endividamento, não tem direito à renegociação se esse direito não foi expressamente previsto, devendo o Judiciário evitar intervir no contrato, modificando condições de pagamento de dívidas, prazos e encargos. Eventual interferência do Poder Público nos negócios jurídicos privados, sob essa roupagem, pode trazer conseqüências sociais ainda mais nefastas, em termos de quebra da segurança jurídica dos negócios, violação à liberdade de contratar e afronta ao princípio do ato jurídico perfeito, valores protegidos pela ordem constitucional.
2ª. A dignidade da pessoa humana, que se concretiza pela garantia de um mínimo de condições materiais, está plenamente protegida contra a cobrança de dívidas, em razão das inúmeras leis existentes na ordem jurídica brasileira que protegem o patrimônio do devedor (a exemplo da impenhorabilidade salarial presente no inc. IV do art. 649 do CPC, e da impenhorabilidade imobiliária disciplinada pela Lei n. 8.009, de 29 de março de 1990). O que pode ocorrer é que o consumidor, tomador do crédito, pelo volume do endividamento e comprometimento de suas finanças pessoais, perca a capacidade de pagamento e, efetivamente, deixe de cumprir com suas obrigações contratuais, mas nunca chegará a ser privado completamente de condições materiais mínimas.
3ª. A responsabilidade pelo processo de (super)endividamento de parcelas substanciais de consumidores não pode ser atribuída com exclusividade às instituições financeiras, já que elas avaliam o risco da concessão do crédito (através de pesquisas em bancos de dados), o que não é suficiente para evitar completamente o inadimplemento do cliente (consumidor de serviços bancários). Se o princípio da boa-fé tivesse de ser invocado nos casos de superendividamento, seria para penalizar o tomador do crédito que, tendo conhecimento de sua limitada capacidade de endividamento, mesmo assim aceita contrair obrigação que sabe que não vai cumprir. As pessoas precisam ter responsabilidade pelo cumprimento de suas obrigações, não podendo o Judiciário quebrar a segurança jurídica dos contratos.
4ª. A renegociação contratual, quando ocorre o superendividamento do consumidor, assim considerada a situação em que suas dívidas superam em muito sua condição de adimplemento, pode ser conseguida através de uma composição amigável entres as partes envolvidas no negócio (concedente e tomador do crédito). Em programas de renegociação de dívidas, patrocinados por órgãos estatais e entidades do setor privado, ficou comprovado que as instituições financeiras quase sempre concordam em reduzir o montante do débito e facilitar o pagamento, quando se convencem da incapacidade de adimplemento do consumidor superendividado.
1 Dentre as propostas da Comissão de juristas responsável pela atualização do CDC (Lei 8.078/90), está a proibição de utilização de expressões enganosas que levem o consumidor a crer que o financiamento é oferecido sem juros ou de forma gratuita. Outra proposta é a de impedir o fornecedor de ocultar os riscos da contratação do crédito, dificultar sua compreensão ou estimular o endividamento.
2 Segundo dados divulgados pelo Banco Central, em novembro de 2008 as operações de crédito o país atingiram R$ 1.187 bilhões correspondentes a 40,2% do PIB. Os saldos de créditos destinados a pessoas físicas foram de R$ 369,3 bilhões em setembro-08, com crescimento de 32,26% em relação a setembro de 2007.
3 O Superendividamento, segundo Claudia Lima Marques, é a condição do consumidor, pessoa física natural, não poder saldar as dívidas que possui com os ganhos provenientes de seu labor, sem que para isso seja prejudicada a sua subsistência (em Sugestões para uma Lei sobre o tratamento do superendividamento de pessoas físicas em contratos de crédito ao consumo: proposições com base em pesquisa empírica de 100 casos no Rio Grande do Sul. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo: Revista dos Tribunais, nº. 55, p. 11-52, jul./set. 2005, p. 11-52).
4 Ob. cit., p. 198.
5 O Superendividamento do Consumidor como Hipótese de Revisão dos Contratos de Crédito.São Paulo: Editora Verbo Jurídico, 2008, p. 162.
6 A tutela do consumidor superendividado e o princípio da dignidade da pessoa humana. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2619, 2 set. 2010. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/17312>. Acesso em: 17 ago. 2011.
7 O mínimo existencial é um dos parâmetros de dosimetria e densificação material da pessoa humana, autorizando inclusive a intervenção judicial para sua preservação na hipótese de omissão do Poder Executivo. Também denominado de mínimo fisiológico, deve ser entendido como “as condições materiais mínimas para uma vida condigna, no sentido da proteção contra necessidades de caráter existencial básico”. Como ensina Rogério Gesta Leal, “um interesse ou uma carência é, nesse sentido, fundamental em nível de mínimo existencial quando sua violação ou não-satisfação significa ou a morte, ou sofrimento grave, ou toca o núcleo essencial da autonomia” (Condições e Possibilidades Eficaciais dos Direitos Fundamentais Sociais – Os desafios do Poder Judiciário no Brasil, Porto Alegre. Livraria do Advogado Editora, 2009, p. 101).
8 Embora exista uma discussão sobre se essa impenhorabilidade salarial é absoluta ou (não), o fato é que há consenso de que a penhora sobre salários ou vencimentos não pode ser de forma integral, comprometendo a manutenção da subsistência do devedor. A respeito do tema, sugerimos a leitura de nosso artigo Da possibilidade de penhora de saldos de contas bancárias de origem salarial. Interpretação do inciso IV do art. 649 do CPC em face da alteração promovida pela Lei nº 11.382/2006, publicado na revista Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 1796, 2 jun. 2008. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/11336>.
9 O art. 649 do CPC tem a seguinte redação:
“Art. 649. São absolutamente impenhoráveis:
I – os bens inalienáveis e os declarados, por ato voluntário, não sujeitos à execução;
II – os móveis, pertences e utilidades domésticas que guarnecem a residência do executado, salvo os de elevado valor ou que ultrapassem as necessidades comuns correspondentes a um médio padrão de vida
III – os vestuários, bem como os pertences de uso pessoal do executado, salvo se de elevado valor;
IV – os vencimentos, subsídios, soldos, salários, remunerações, proventos de aposentadoria, pensões, pecúlios e montepios; as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal, observado o disposto no § 3o deste artigo;
V – os livros, as máquinas, as ferramentas, os utensílios, os instrumentos ou outros bens móveis necessários ou úteis ao exercício de qualquer profissão;
VI – o seguro de vida;
VII – os materiais necessários para obras em andamento, salvo se essas forem penhoradas;
VIII – a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família;
IX – os recursos públicos recebidos por instituições privadas para aplicação compulsória em educação, saúde ou assistência social;
X – até o limite de 40 (quarenta) salários mínimos, a quantia depositada em caderneta de poupança.
XI – os recursos públicos do fundo partidário recebidos, nos termos da lei, por partido político.
§ 1o A impenhorabilidade não é oponível à cobrança do crédito concedido para a aquisição do próprio bem.
§ 2o O disposto no inciso IV do caput deste artigo não se aplica no caso de penhora para pagamento de prestação alimentícia.
§ 3o (VETADO)”.
10 O STJ, interpretando esses dispositivos, tem ampliado a garantia a praticamente todos os utensílios e eletrodomésticos existentes na casa (único imóvel residencial) do devedor, a exemplo de televisão, fogão, geladeira, computador etc. Para a Corte Superior, só são penhoráveis esses equipamentos se existentes em duplicidade. Tudo o mais que existir em forma de um único item, à exceção de obras de arte e adornos suntuosos, não pode ser penhorado.
11 A Lei n. 10.820, de 17 de dezembro de 2003, dispôs sobre a autorização para desconto de prestações em folha de pagamento. Estabelece esta Lei que os empregados podem autorizar o desconto em folha de pagamento dos valores referentes a empréstimos, financiamentos e operações de arrendamento mercantil concedidos por instituições financeiras e sociedades de arrendamento mercantil (art. 1º.). O desconto pode, inclusive, incidir sobre verbas rescisórias, desde que limitado a 30% (par. 1º. do mesmo artigo). Os inativos (aposentados e pensionistas) que recebem benefícios pelo INSS também estão autorizados pela Lei a contratar empréstimos mediante desconto em folha (art. 6º.). Já em relação aos servidores públicos civis (da União), o Decreto n. 4.961, de 20 de janeiro de 2004, que regulamenta o art. 45 da Lei n. 8.112, de 11 de dezembro de 1990, também permite que eles autorizem consignações em suas folhas de pagamento, para cobertura de certos tipos de empréstimo (a exemplo de financiamentos para aquisição de imóveis residenciais e empréstimo concedido por entidade de previdência privada), mas desde que a soma mensal das consignações não exceda valor correspondente a 30% dos vencimentos (art. 11).
12 Na ausência de uma limitação ao desconto, o Judiciário pode (e deve) intervir na relação contratual, de modo a restabelecer o equilíbrio entre as partes, modificando a cláusula contratual que estabelecera a prestação desproporcional (art. 6º, V, do CDC). Por analogia às Leis que regulamentam as consignações em folha de pagamento, a autorização para desconto em conta-corrente não deve comprometer mais que 30% do salário creditado mensalmente. Para melhor compreensão dessa , sugerimos a leitura de nosso artigo Cláusula que autoriza desconto em conta corrente para pagamento de empréstimo. Sua abusividade quando ilimitada, publicado na Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 350, 22 jun. 2004. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/5384>.
13 Instituições de Direito Civil, vol. III, Rio de Janeiro, Forense, 2009, p. 22.
14 O governo tem programas de financiamento para estudantes que não têm recursos para pagar um curso superior. Um dos principais programas implementados é o Fies, criado em 1999 para financiar estudantes carentes. Outro programa é o Prouni, criado em 2004 e destinado à concessão de bolsas para alunos comprovadamente carentes, oriundos de instituições públicas e submetidos ao Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Apesar dos benefícios que esses programas trazem aos estudantes, é alto o índice de inadimplência e são inúmeras as causas que chegam à Justiça questionando as formas de pagamento de um curso, bem como as taxas de juros e a cobrança de mensalidades. Segundo notícia veiculada pelo jornal Folha de S. Paulo, de julho de 2010, com dados referentes a junho de 2009, mais de 50 mil estudantes, dos 250 mil contratos em fase de quitação da dívida junto à Caixa Econômica Federal, estariam inadimplentes e solicitaram a renegociação; o que representa 25% do total.
15 STJ-1ª. Turma, REsp 949.955-SC, rel. Min. José Delgado, j. 27.11.07, DJ 10.12.07.
16 Resolução 3258 do BACEN:
“IX- É vedado às instituições financeiras:
a) realizar operações que não atendam aos princípios de seletividade, garantia, liquidez e diversificação de riscos;
b) conceder crédito ou adiantamento sem a constituição de um título adequado, representativo da dívida.”.
17 A título de exemplo pode ser citado o “Programa de Tratamento de Consumidores Superendividados, denominado de PROENDIVIDADOS, instituído pelo Ato nº 75/2011-SEJU, de 11 de fevereiro de 2011, do Presidente do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco, sob a coordenação e a gestão da Escola Superior da Magistratura de Pernambuco – ESMAPE. O Programa é vinculado, jurisdicionalmente, à Seção Especializada de Tratamento de Consumidores Superendividados da Central de Conciliação, Mediação e Arbitragem da Comarca da Capital (Primeiro Grau), onde os acordos obtidos são submetidos à homologação e execução judicial. O programa fornece inclusive, caso o consumidor tenha interesse, assistência social e psicológica, além de orientação, através de cursos específicos, com o objetivo de auxiliá-lo na sua reeducação financeira, prevenindo o superendividamento.
18 No programa “Globo Repórter” da TV Globo, veiculado no dia 26.08.11, que tratou do tema do superendividamento, foi divulgada a informação de que as instituições de crédito concordam em reduzir as dívidas dos consumidores até 80% em alguns casos.